quarta-feira, novembro 11, 2020

Palíndromo - "O que pensamos realmente da nossa própria atuação seja como historiador, seja como crítico, seja como artista?"

Nome da Revista: Palíndromo

Classificação: B3

Dossiê Temático: O que pensamos realmente da nossa própria atuação seja como historiador, seja como crítico, seja como artista?

Prazo: Não especificado

Titulação: Não especificada

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Esse dossiê é um teste. O que pensamos realmente da nossa própria atuação seja como historiador, seja como crítico, seja como artista?

O trabalho de um artista, de um crítico ou de um historiador acontece numa estrutura tão simples quanto um “X”: existem, para os vários lugares que têm a arte como sua matriz de realização, relações estreitas e encontros que a letra “X”sintetiza perfeitamente. O que encontramos de instigante nela é a circulação nas suas linhas. Apresentam possibilidades mais lineares ou de bifurcação para várias figuras profissionais que se deslocam e convergem para criar, criticar, historicizar; produzir obras e conhecimentos; inventar narrativas e (re)criar sentido etc. Mas o mais importante é que a circulação no “X” se determina com relação ao ponto de cruzamento das linhas. Se o historiador, o crítico, o curador, também, e, em outros campos do conhecimento afins, o filósofo, o antropólogo, o sociólogo etc. traçam as linearidades, é porque eles estão em contato constante com o centro do desenho, núcleo propulsor. Se a esse centro tudo vai; se dele tudo vem, é porque ele tem uma identidade universal: é o artista.

Mas o que significa: “o que me/nos/vos motiva?” A resposta deveria dizer respeito à relação que instituimos com a arte e sua história, a saber, o que os artistas fazem hoje e fizeram no passado, o legado artístico que todos nós herdamos. E sabemos o quanto imenso, complexo, rico, denso e infinito ele é! Essa problemática interessa, de maneira indiferenciada, quem faz arte, quem cria, quem escreve a seu respeito, quem a estuda, quem a ama, assume, transgride, faz avançar etc.

O dossiê propõe, portanto, a elaboração de uma série de autorretratos críticos (não clínicos!) capazes de apresentar para o leitor as motivações – críticas, novamente... - profundas que sustentam e atravessam o que cada um de nós faz quando olha para a arte, seja ela contemporânea, seja ela moderna, seja ela clássica, seja ela antiga. O que interessa no que a arte é e faz hoje, o que a arte foi e fez ontem? O que desperta meu interesse? Por que sou historiador da paisagem romântica? Por que sou historiador do neoconcretismo? Por que sou performer e não pintor, ou os dois juntos? Por que focalizo toda minha energia criativa ou investigativa num mesmo tipo de objeto ou preocupação? (é bem assim que vemos artistas ou pesquisadores explorando o mesmo campo estético anos a fio, ou outros sentindo a necessidade de mudar regularmente). Por que trabalho sobre a arte da minha região e não num feixe espacial maior? Por que só a arte atual se salva a meus olhos? Por que só as causas políticas consideradas urgentes me parecem dignas e por que penso que a arte deveria estar a serviço de causas? Por que escolher tal ou tal modelos, tal ou tal movimento, tal ou tal conceito, tal ou tal episteme para elaborar minha abordagem da arte? Por que defino-me em função de modelos artísticos ou epistemológicos que contribuíram a determinar minha personalidade ou me recuso a reconhecer predecessores? “Por que?” infindável e perguntas aparentemente ingênuas, mas que abrem a Caixa de Pandora dos estratos mais complexos da minha maneira de me situar na cena (trans-;multi-;inter-;uni-)disciplinar que me diz respeito como produtor de significações artísticas e/ou críticas. Se, como analisou Panofsky, a Caixa de Pandora é a caixa dos múltiplos dons que determinam a gama de riquezas e fenômenos presentes na vida, porque não pensar que nosso trabalho seria mais uma maneira de enriquecer simbolicamente a fascinante complexidade do mundo? É isso: como o fazemos e através de que motivações?

Numa palavra, de que olhar, ao mesmo analítico, empático (ou antipático) eu sou portador no amplo leque de maneiras de se relacionar com a arte? As mais insuspeitas respostas podem aparecer.

Isso tudo requer paixão. Ah! A psicologia de baixo escalão está de volta! Não. Quando falamos em paixão, não remetemos ao sentimento pessoal, mas a algo mais potente: o páthos que me anima como pesquisador, artista(-pesquisador), historiador-crítico, esteta, curador etc. O páthos como fonte genésica e genérica. Afeto, se quisermos, mas no sentido de uma paixão “epistemológica”. Trata-se de nossa disposição, do dispositivo cognitivo e crítico que construímos pacientemente ao longo dos anos para amparar e consolidar nossa atividade. Trata-se de uma disposição e de dispositivos interiores e profissionais que determinam, seja na produção, seja na recepção, seja na investigação, seja na interpretação, seja na expressão, seja na enunciação, o perfil, o tom, a atmosfera de nossa relação com a arte, sua história, sua dinâmica; as obras, as imagens, os movimentos; as ousadias, as estagnações, as experimentações; as categorias teóricas; os ciclos, os modelos; as antecipações, as premonições, essa competência “sísmica” do artista em registrar e manifestar nas obras as forças profundas do mundo, como dizia o crítico de arte russo Nicolaï Punin há cem anos.

O que me/nos/vos motiva? Tal é a pergunta endereçada às pessoas, aos agentes, às personagens que se cruzam um dia no X da questão. 

É evidente que a resposta não pode acontecer sem solicitar também uma certa visão do tempo, o tempo da arte. O que um dossiê como este quer tentar é de aproveitar o autorretrato crítico para criar uma constelação significativa em que os ensaios pensam o corolário de todo reflexão sobre a arte e sua dinâmica intrínseca: a relação com o tempo, nosso, de ontem, idiossincrático. Ele é o componente primordial da difícil dialética que cada artista, mas também todo profissional mais distanciado, o historiador ou crítico, por exemplo, precisa trabalhar para inserir na arte sua fala.

Essa inserção pode gerar paradoxos estimulantes. Trata-se sempre de superposições, de camadas mixtas, de fluxos plurais: é o cineasta Peter Greenaway que faz de seu filme Ronda Noturna um eco a Rembrandt, que teria inventado o cinema; é o ambiente de Hélio Oiticica que integra, entre outros agentes, o aporte considerável da fenomenologia (da percepção); é Glauber Rocha que reata com todas as potências da alegorização; é André Malraux que evoca no seu Museu Imaginário a contemporaneidade de Skakespeare, Beethoven e Rembrandt; é Jannis Kounellis, da Arte Povera, que chama sua coleção ideal de referências heterotemporais de “pantheon”; é Didi-Huberman que monta de maneira reiterada seu leque de parceiros vindos da história do pensamento para fazer do diálogo entre camadas do tempo potentes figuras de inteligência da história; é o cenário estupendo que Yadegar Asisi monta no Pergamon de Berlim, a recriar, usando todos os recursos da tecnologia digital e reatando com o modelo romântico do panorama, as vinte-e-quatro horas de um dia na cidade helenística de Pérgamo; é G. Agamben que escolhe o Polichinelo de Tiepolo para propor um retrato singular da figura do artista; é o polêmico Vik Muniz que encena a iconografia clássica em ações performáticas que mesclam pobreza social e teatro da glória, etc.

Se a palavra “pantheon” aparece hoje como nome antigo para referências em desuso ou sem poder de nos dizer algo, ela não deixa contudo de remeter a processos “politeístas” e polissêmicos de montagem e assemblagens histórico-simbólicos que todos nós praticamos para erguer nosso museu interior assim como nossa criteriologia. Ninguém escapa a essa regra. Podemos não ser benjaminianos, mas o agora e o outrora não cessam de se encontrar...

Repitamo-lo: nenhum de nós se relaciona com ou se insere na cena artística e epistemológica sem possuir ao seu redor e no seu mais íntimo uma matriz generativa tendo função de propulsor. A canalizamos. Criamos e balizamos percursos a partir e dentro de um saber transmitido, de conceitos e conhecimentos acumulados, mas vivos, submetidos a revisões, a perspectivas de todo tipo que convocam o que Baudelaire chamava de “ordens do espírito”...  Podemos ignorá-las, mas estão pairando no ar que respiramos. 

Esses parcos exemplos, bem clássicos..., vieram sugerir o quanto inesperados, insuspeitos, são os processos  que determinam, na articulação da sensibilidade e da razão, nossas montagens.  Trata-se de uma forma bem mais livre, hoje, de disegno, em que a ideia, o projeto, o conceito, a análise, a introspecção, o ardor, o desejo etc. se mesclam para criar o cerne da manifestação artística e/ou discursiva. Nesse círculo mágico, oscilamos entre lucidez e errâncias de todo tipo. Por que não reconhecer que tateamos frequentemente e que a condição labiríntica dos processos podem constituir nossa estética favorita?